Governo prioriza reuniões com mercado de apostas e deixa saúde em segundo plano

Ernest Bowes

Atualizado :

Em meio ao debate de dependência em jogos, apenas cinco encontros foram realizados com entidades de saúde durante a regulamentação das apostas

Nos últimos 16 meses, o governo brasileiro priorizou o diálogo com o mercado de apostas em detrimento das entidades de saúde. De acordo com dados obtidos no site E-agendas e analisados pela Folha, foram realizadas 251 reuniões entre funcionários da Fazenda e representantes de bets, enquanto apenas cinco encontros contaram com a participação de profissionais de saúde.

Essa disparidade é especialmente alarmante diante do cenário atual, descrito por especialistas como uma “epidemia de dependência em jogos“. A regulamentação do setor, que seguiu normas semelhantes às de países como Gibraltar, Malta e Curaçao, foi alvo de críticas por não abordar adequadamente o impacto na saúde pública.

As falhas apontadas pelos especialistas são muitas. Entre elas, podemos destacar a falta de investimento em ambulatórios especializados, a ausência de campanhas de conscientização e a insuficiência de treinamento para profissionais de saúde mental.

Reuniões frequentes com o mercado de apostas

A cada semana, representantes do governo se reuniam com duas principais entidades do mercado de apostas, o Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR) e a Associação Nacional de Jogo Legal (ANJL). Essas organizações representam grandes players do setor, como Betsson, Betano e Caesars Sportsbook, que têm demonstrado interesse crescente no mercado brasileiro.

Enquanto isso, a participação do Ministério da Saúde foi mínima. Somente quatro reuniões envolveram representantes da Secretaria de Saúde Mental, e, em uma delas, a presença foi apenas para debater questões superficiais.

O único ambulatório especializado em vício em apostas, o Pro-Amjo, ligado ao Hospital das Clínicas da USP, não foi consultado durante a formação das políticas de “jogo responsável”.

Críticas à falta de foco na saúde

O professor de psiquiatria da USP, Hermano Tavares, coordenador do Pro-Amjo, foi contundente, afirmando que “o país não fez o dever de casa” ao lidar com a crescente epidemia de vício em apostas. Desde a legalização dos sites de apostas em 2018 e sua posterior regulamentação, houve uma explosão no número de casos de ludopatia, especialmente entre jovens.

Os dados mais recentes sobre essa situação são de 2011, e a coleta foi interrompida por falta de financiamento. Por outro lado, a realidade nas clínicas especializadas é preocupante. Pacientes chegam endividados, com problemas familiares e no trabalho, e em casos extremos, com ideação suicida. O perfil típico é de jovens entre 20 e 30 anos, muitos dos quais acumulam dívidas superiores a R$ 200 mil.

O Pro-Amjo oferece consultas presenciais e remotas, e já tem sua agenda lotada até o final do ano. Além disso, o Grupo de Jogadores Anônimos (JA), que funciona nos moldes do Alcoólicos Anônimos, tem uma presença limitada no país, com apenas 39 unidades. Esse quadro deixa clara a falta de estrutura para lidar com a crescente demanda por tratamento.

Futuro incerto para o jogo responsável

O Ministério da Fazenda afirma que a construção de campanhas educativas para mitigar os efeitos negativos das apostas está na agenda do mercado regulado, previsto para começar em janeiro de 2025. A iniciativa incluirá a participação da Secretaria de Prêmios e Apostas, da Diretoria de Saúde Mental e dos próprios sites de aposta.

Entretanto, especialistas ressaltam que é preciso muito mais do que campanhas educativas para conter a epidemia de ludopatia. A comparação com campanhas de “beba com responsabilidade” surge de forma inevitável, com muitos questionando se o compromisso das empresas de apostas com a saúde pública será suficiente.

Em suma, enquanto o governo avança na regulamentação de um setor bilionário, as preocupações com a saúde pública ficam em segundo plano. A falta de preparação e investimento para lidar com a crescente dependência em jogos liga o alerta vermelho, levantando sérias dúvidas sobre o futuro da política de “jogo responsável” no Brasil.

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