A música Coração Verde-Amarelo foi usada pela Rede Globo, como tema, durante várias Copa. Na primeira estrofe ela diz, “na torcida são milhões de treinadores; cada um já escalou a seleção”. Muitos torcedores se sentem treinadores. Analisam o jogo e comentam formas de jogar, ainda que superficial. Naquele momento, muitos sentiam-se treinadores e comentaristas. O fã do esporte, dá palpite, faz sua própria escalação, mas tudo distante do gramado. Então, poder-se-ia dizer com certa segurança, que na torcida há milhões de comentaristas. E todos entendem, ao seu modo, a mecânica e a estética do jogo. Aquilo que é opinião, muitas vezes íntima no torcedor, é levado a público, não só aos amigos próximos, mas graças ao era da conexão, espalhadas pelas trilhas sociais virtuais.
Na ânsia de tornar-se comentaristas, as ferramentas de mídias sociais tornaram o espectador comentarista de tudo, não só do futebol, um doutor em generalidades. Para além da simbologia do comentário, há a ação de julgar. Aquele que julga a ação de outrem, classificando-o duramente como aceitável, ou inaceitável, como é no futebol, também aos seus critérios. Há o comentarista de futebol que também é comentarista do comentarista de futebol.
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Ao longo dos últimos tempos percebemos que o tribunal de julgamento nas mídias sociais condenou vários comentaristas. Cada um por seu motivo. O objetivo da coluna não é analisar os comentários de julgamento, mas entender este movimento. Cada história é única nos seus elementos. Mesmo assim, chamo atenção para quatro nomes de comentaristas que foram condenados pela massa de comentaristas de mídias sociais, são eles, Aline Bordalo, Sócrates, Ana Thaís Matos e Júlio Cocielo.
O Dicionário Macquair, em 2019, elegeu como palavra do ano, “cultura do cancelamento”. Para o pensador brasileiro, Sílvio Almeida (2020), a cultura do cancelamento produz um “morto-vivo”, ou ainda, uma alma penada que habita uma casa arrastando correntes. A cultura do cancelamento promove coletivamente a anulação de outrem. A partir daquilo que o outro falou, julga-se a pessoa e não apenas o comentário. É uma ação desproporcional, porque o lugar de fala dos envolvidos parte de pressupostos diferenciados.
A cultura do cancelamento não se reduz apenas em comentar o comentarista, mas ela tem, neste aspecto, o primeiro movimento. Para Thays B. Silva e Erica M. Honda (2020) há quatro estágios no cancelamento. Primeiro a intolerância com a fala; o segundo momento é o boicote ao agente do discurso; o terceiro momento é a polarização sobre as falas e por último, o linchamento virtual. O linchamento virtual é tortuoso porque ele anula todas as falas anteriores e posteriores do “cancelado”, tornando-o um morto-vivo.
O que motivou o texto foi a percepção, em alguns grupos de mensagens instantâneos, que alguns comentaristas têm todas as suas falas negadas, ou melhor, canceladas. Como se não houvesse qualquer tipo de crédito na fala. O linchamento virtual dar-se-á por questões políticas; por erros dos próprios comentaristas; ou ainda, pela implicância polarizadas. Os motivos são diversos, mas diante disto cabe a pergunta, todo argumento é válido, ainda que para cancelar outrem?
Toda história tem vários lados. No final de semana, rebatendo o jornalista, o jogador Felipe Melo (Palmeiras), declarou “aceita que dói menos”, dirigindo-se para o repórter global Eric Faria. O jornalista disse que Abel Ferreira não foi brilhante. Discordo de ambos. De Eric Faria, porque o esquema 4-5-1 de Abel anulou o ataque do Flamengo, e do volante palmeirense por contra-atacar desta forma. Argumento chulo e inútil, ele não tem capacidade de leitura de jogo para desmontar o argumento do repórter? Felipe Melo é um volante de respeito e trajetória no futebol internacional, espera-se que ele compreenda o jogo de futebol melhor que compreendeu a seleção da Holanda em 2010. Apresento o exemplo para afirmar, nem todo argumento é válido. Quem está na mídia, ou quem tem lugar de destaque na fala, possui uma responsabilidade argumentativa, que o comentarista do botequim não tem. Há esferas discursivas diferentes.
O pensador alemão Jürgen Habermas (2014) reconhece que a sociedade hodierna opera em três esferas, a pública, a privada e a íntima. Grosso modo, a pública representa uma dimensão do social que atua mediante o Estado e a opinião pública; a esfera privada representa o domínio da vida de alguém e a esfera íntima é a o que diz respeito à subjetividade de cada qual. A cultura do cancelamento viola o modelo de esferas apresentado por Habermas. Ao cancelar, não apenas o dito público entra em colapso, mas também é linchado a esfera privada do sujeito. Em vez de discutir o conhecimento, ataca-se a opinião. Neste caso, opinião, ou em grego dóxa, é da esfera privada, senão, íntima, enquanto a ação do comentarista é pública.
As mudanças estruturais, vistas e analisadas a partir de Habermas, não dão conta da inclusão do ciberespaço. Apesar dos inegáveis avanços, a nova era da informação virtualizada criou bolhas, que por sua vez, negam outros saberes e tornam invisíveis outros discursos. O que se aplica aos comentaristas citados, que apesar de um posicionamento discutível, tem toda uma carreira invisibilizada. A cultura do cancelamento não fura a bolha, mas é o movimento da brincadeira de bolhas de sabão. Duas ou mais bolhas menores, encontram-se e formam uma bolha maior. A cultura do cancelamento se reforça no embolhamento de pares.
O que torna um argumento válido, além dos aspectos lógicos, há também os elementos morais. Um argumento é aceitável, na medida que ele respeita as normas morais do espaço vigente e se estrutura numa cadeia sequencial de elementos. O comentarista, no exercício da profissão, exerce uma função pública, mas a pessoa, enquanto um sujeito de direitos e deveres, está na esfera privada. A validade do argumento é pautada na lógica que o constrói e no aspecto moral da aceitação. A cultura do cancelamento não cabe em nenhuma das duas perspectivas. Todos nós julgamos todos os argumentos, mas isto acontece na esfera íntima. Essa transposição de esferas é que torna caótico as relações no ciberespaço, desqualificando certos argumentos. Aqui caótico é entendido como algo negativo.
Todos se sentem treinadores, como a música descreve todos sentem-se no direito de exprimir o que pensam. Mas há espaço para tantos discursos? O lugar de fala tem o mesmo peso? Ou, o uso público da razão é diferente do uso privado? Partindo deste pressuposto, torna-se inválido a ação de cancelamento. Ao mesmo tempo, para se tornar um argumento válido, exige-se da fala uma estrutura lógica e aspectos morais, afirmar “aceita que dói menos” é titubear a lógica e no mínimo, moralmente questionável.
LEITURAS MOBILIZADAS:
ALMEIDA, Sílvio. A cultura do “cancelamento” é a antipolítica por excelência. Disponível em: <https://disparada.com.br/cancelamento-antipolitica/?utm_source=pocket_mylist>. Acesso em: 24 nov. 2021.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: Investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Editora da Unesp, 2014.
SILVA, Thays Bertoncini.; HONDA, Erica Marie. O “Tribunal da Internet” e os efeitos da cultura do cancelamento. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/331363/o–tribunal-da-internet–e-os-efeitos-da-cultura-do-cancelamento>. Acesso em: 24 nov. 2021.
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Henrique Neves é antropólogo por formação, mas esportista por natureza. Apaixonado por vôlei, aprendeu a jogar ainda pequeno. Escreve sobre esportes e ama praticar esportes radicais. É formado em Comunicação pela PUC-Rio. Fã de Vinicius Jr, torce pelo Flamengo.